tag:blogger.com,1999:blog-25415771993799535142024-02-18T21:10:17.893-08:00Neurociências e Filosofia da MenteJ Francisco Saraiva de Sousahttp://www.blogger.com/profile/10426620453669993201noreply@blogger.comBlogger5125truetag:blogger.com,1999:blog-2541577199379953514.post-37420670983184791852012-07-03T14:49:00.000-07:002012-07-03T14:49:02.523-07:00Hiena Malhada: Diferenciação Sexual<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgG08xZb4HvJG2MN4WK4tPvt9Jr5c0odv3Pu-m4NyQId8mm1cJmIMjr_z1fCuWd8LRdeq4iS_j4mqc6A8Q8QCn8qQQP-C8WkPyDYJ5p79j98iMX7kMdVA85V5UX3iIwAmz72J6XtgpK1XA/s1600-h/hiena+2.JPG"><img alt="" border="0" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5337589466964863698" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgG08xZb4HvJG2MN4WK4tPvt9Jr5c0odv3Pu-m4NyQId8mm1cJmIMjr_z1fCuWd8LRdeq4iS_j4mqc6A8Q8QCn8qQQP-C8WkPyDYJ5p79j98iMX7kMdVA85V5UX3iIwAmz72J6XtgpK1XA/s400/hiena+2.JPG" style="cursor: hand; display: block; height: 250px; margin: 0px auto 10px; text-align: center; width: 281px;" /></a><br />
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiu1pOlM8HfNuwNW_fKJiOwYwU3qdmsfANRagsVlT4rVCMz8wAZPVVVncDNgqFcqGEmnVWsN6sMhW4Pnvjwfi9qxA69Sm9V73gPabAW1xXDbiKZHH76xPVdEZwyJrEQZTDDhcXCa60txLc/s1600-h/hiena+1.JPG"><span style="font-family: 'trebuchet ms';"><img alt="" border="0" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5337589054585732818" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiu1pOlM8HfNuwNW_fKJiOwYwU3qdmsfANRagsVlT4rVCMz8wAZPVVVncDNgqFcqGEmnVWsN6sMhW4Pnvjwfi9qxA69Sm9V73gPabAW1xXDbiKZHH76xPVdEZwyJrEQZTDDhcXCa60txLc/s400/hiena+1.JPG" style="cursor: hand; display: block; height: 250px; margin: 0px auto 10px; text-align: center; width: 380px;" /></span></a><span style="font-family: 'trebuchet ms';">Os sábios da Antiguidade, entre os quais Aristóteles, acreditavam que a hiena malhada era hermafrodita. O erro era compreensível, porque a fêmea possui um clitóris tão grande quanto o pénis do macho e, tal como este, urina por intermédio do seu falo. Além disso, a fêmea parece não ter vagina, visto que, no decurso do acasalamento, o macho introduz o seu pénis na extremidade do clitóris e, mais tarde, as crias nascem por esta via clitoridiana, com consequências dolorosas e, frequentemente, fatais para a mãe. (Na fotografia A, a fêmea foi tratada com um inibidor da aromatase; na fotografia B, não sofreu qualquer "tratamento". Cf. Glickman et al., 1987) </span><br />
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<span style="font-family: 'trebuchet ms';">Glickman & Licht (1987) ajudaram-nos a compreender como uma situação tão inusitada pôde estabelecer-se durante a evolução. As hienas nascem com esta aparência externa sexualmente monomorfa, embora tendam a ser maiores do que os machos. Foram sugeridas duas hipóteses para explicar este fenómeno: ou ambos os sexos são expostos aos androgénios pré-natais (1), ou os seus tecidos epiteliais desenvolvem-se de forma masculina, quer os androgénios estejam presentes ou ausentes (2). Os estudos do metabolismo dos esteróides da placenta da hiena fortaleceram a primeira hipótese. Nos outros mamíferos, a placenta aromatiza rapidamente os androgénios em estrogénios e esta transformação pode ser uma via para proteger a mãe e os fetos fêmeas contra os androgénios produzidos pelos machos fetais. Como se sabe, nos roedores, uma proteína plasmática, a alfa-feto-proteína, impede os estrogénios circulantes de masculinizar o cérebro. Como demonstraram Licht et al. (1992), a placenta da hiena é totalmente desprovida desta "enzima aromatase". Como a mãe hiena produz grandes quantidades de androstenediona (Glickman et al., 1987) e a placenta não pode converter esta hormona androgénica em estrogénios, todos os fetos recebem quantidades consideráveis de androgénios. Este facto pode explicar a razão da sua aparência masculina. <blockquote>
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Um teste crucial para esta hipótese seria observar se, na hiena listrada, cuja fêmea não tem essa aparência de macho, a placenta tem uma actividade mais semelhante à dos outros mamíferos do que à da hiena malhada. Enquanto não se realizarem essas observações, parece ser provável que o cérebro da hiena malhada seja afectado pelos androgénios precoces, visto que as fêmeas crescem mais rapidamente e são mais agressivas do que os machos. A sua vida social está centrada em torno das fêmeas adultas, que são todas dominantes em relação aos machos. Do ponto de vista etológico, esta dominância das fêmeas significa que elas são as primeiras a comer uma presa e que, fora da estação dos amores, não toleram ao seu lado a presença dos machos. Existe também uma hierarquia de dominância entre as fêmeas e as filhas das fêmeas de elevado estatuto social, na qual as últimas tendem a aceder primeiramente à alimentação e aos outros recursos. A pressão selectiva é, portanto, considerável para tornar as fêmeas agressivas, sobretudo em relação às outras fêmeas. <blockquote>
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Além disso, descobriu-se que, nas hienas "criadas em cativeiro" em Berkeley, os recém-nascidos começam a lutar imediatamente após o seu nascimento. Eles nascem com dentes e utilizam-nos imediatamente para atacar os membros da ninhada. As fêmeas são particularmente agressivas, principalmente contra as suas irmãs. Os "estudos de terreno" também indicam que, no estado selvagem, é muito frequente que um recém-nascido mate um outro recém-nascido (Glickman & Licht, 1991). Ainda não se sabe se este excesso de agressão seja devido à estimulação do cérebro pelos androgénios pré-natais, mas, mesmo que esse seja o caso, as fêmeas acasalam-se e o seu cérebro, ao contrário do que sucede com as ratazanas androgenizadas antes do nascimento, não é permanentemente não-receptivo. Porém, o acasalamento da hiena malhada parece ser um combate angustiante, já que a fêmea tolera mal a proximidade do macho e este, por sua vez, alterna aproximações e afastamentos da sua parceira fisicamente mais poderosa. Estes dados sugerem que a ausência da enzima aromatase desempenha um papel fundamental na diferenciação sexual da hiena malhada. Se a sua ausência na placenta da hiena malhada produz fêmeas hiper-androgenizadas, então é provável que, noutros animais, o mesmo efeito possa ocorrer, donde resulta uma explicação provável de certos tipos de estruturas e de comportamentos sexuais, incluindo a orientação sexual. <blockquote>
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O estudo da hiena malhada foi usado para testar a hipótese neuro-endócrina da diferenciação sexual do cérebro e do comportamento e, portanto, das diferenças sexuais, mas estudos mais recentes parecem apontar para a existência de factores e de mecanismos genéticos, particularmente evidentes em certas espécies animais, que agem sobre a diferenciação sexual antes da produção e da entrada em cena da testosterona pré-natal. Por isso, o "modelo da hiena malhada" tem sido ultimamente «preterido» a favor do "modelo do carneiro", o qual parece fornecer uma explicação interessante da homossexualidade masculina humana, destacando o papel fundamental da aromatase na diferenciação sexual do cérebro e do comportamento, bem como na «determinação» da orientação sexual. Além disso, estudos recentes, recorrendo a procedimentos experimentais ultrasofisticados, têm mostrado que a diferenciação sexual da hiena malhada é um processo muito mais complexo do que se pensava inicialmente. A história da ciência tem destas coisas: modelos que mereciam inicialmente a "confiança" da comunidade científica acabam por revelar a sua fragilidade e, em vez de parar, a ciência recorre a outros modelos para tentar uma explicação dos fenómenos em estudo, podendo mudar ou manter a mesma hipótese de trabalho encarada a uma nova luz. Este caso da hiena malhada, além de interessar à epistemologia das ciências biológicas, pode ajudar a filosofia a ler a sua própria história à luz das "diferenças sexuais" enumeradas e explicadas pelos filósofos nas suas obras, sem encarar essas afirmações como "preconceitos" que devam ser ignorados e esquecidos, de modo a avançar tanto quanto possível com a nova Filosofia Sexual. (Este post foi publicado com o título </span><a href="http://cyberself-neurofilosofia.blogspot.com/2007/09/hiena-malhada-um-modelo-animal.html"><span style="font-family: 'trebuchet ms';">HIENA MALHADA: Um modelo animal</span></a><span style="font-family: 'trebuchet ms';"> , e depois, numa forma corrigida, <a href="http://cyberdemocracia.blogspot.com/2008/02/filosofia-e-diferenciao-sexual-da-hiena.html"><strong>aqui</strong></a>.) <blockquote>
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J Francisco Saraiva de Sousa</span></div>J Francisco Saraiva de Sousahttp://www.blogger.com/profile/10426620453669993201noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-2541577199379953514.post-2344682756797057502009-08-02T13:50:00.000-07:002012-07-03T14:48:47.694-07:00Mind-Body Problem<div align="justify">
<img alt="" border="0" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5365473850101407506" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh44vanxteAy3UD2Lfd0XUw0T7li-2K52R60JwIROkZQbBF7sWolTbkF2vAxo9yRqhiiI3mUoxa-Eg9RuvdWD163JDR44SB2z21aEOsfA2_r098p62-l_rQ5v2jVYaMNabbUKxth0psw1w/s200/human-brain.jpg" style="cursor: hand; float: left; height: 140px; margin: 0px 10px 10px 0px; width: 200px;" /><span style="font-family: 'trebuchet ms';">«<span style="color: #000099;">A interacção espírito-cérebro abre ao estudo do córtex cerebral um futuro radioso. As interacções psicões-dendrões proporcionam as situações fundamentais. O reduzido grau de probabilidade da exocitose dos neurónios corticais, nas três experiências fiáveis realizadas ao hipocampo (Sayer et al., 1990), constitui uma base sólida para explicar através do conjunto de influências mentais a intensificação dos EPSP (Beck & Eccles, 1992). Reconhecer-se-á que não confiro ao cérebro nem propriedades mentais nem qualia. Estas pertencem exclusivamente ao domínio da consciência, pois fazem parte dos Mundos 2 e 3.</span>» (<strong>John C. Eccles</strong>)</span></div>
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No campo da teoria, cada posição teórica afirma-se contra outras posições teóricas já instaladas, de modo a desalojá-las e a ocupar o seu território. John C. Eccles identificou o seu adversário: a teoria materialista e as suas quatro versões fundamentais, tal como foram delimitadas por Karl Popper, às quais opõe o dualismo interaccionista. Conforme mostrou Theodor W. Adorno, existe uma multiplicidade de materialismos, entre os quais destaca o materialismo metafísico, tal como ocorre na Antiguidade Clássica, proveniente da velha especulação naturalista e hilozoísta, o materialismo científico que procura explicar cientificamente a matéria derivando de um princípio unitário a multiplicidade das suas manifestações, o materialismo antropológico que reduz todas as manifestações sociais à natureza humana, o materialismo vulgar ou naturalismo que equipara os processos espirituais aos processos nervosos, e o materialismo marxiano. A crítica de Eccles dirige-se ao materialismo vulgar ou naturalismo: aquela forma de materialismo que identifica ou reduz a mente ao cérebro em acção. Porém, um tal materialismo fundamenta-se no materialismo científico ou fisicalismo, segundo o qual só existe o mundo físico, o Mundo 1 de Karl Popper, que pode ser estudado pela ciência. É muito difícil separar estas duas formas de materialismo, porque a primeira deriva ou é apenas uma extensão da segunda, ou, como disse Sartre, o materialismo é, por excelência, a filosofia que suporta todo o projecto da ciência moderna, mas com esta diferença: se ontem, isto é, no passado recente, a ciência materialista era uma força colocada ao serviço da libertação e da emancipação, hoje a "ciência tecnificada" (Heidegger) e socialmente organizada está ao serviço da escravidão e da destruição, portanto, da dominação. É evidente que esta nova visão da ciência se deve a uma outra forma de materialismo: o materialismo negativo de Marx que, além de visar o fim do materialismo, ensina que a ciência não capta a realidade imediatamente tal como ela é, mas como algo mediado em si mesmo pela sociedade e pela linguagem do poder.</div>
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A hipótese dos microsites de Eccles encobre, como veremos, um problema: pretende ser uma alternativa adequada ao materialismo predominante, alegando que está em conformidade com o princípio da conservação de energia, um princípio que deriva do materialismo científico que nunca levou em conta a mente, e que abre à ciência um campo de investigação imenso, tanto na física quântica como no domínio das neurociências. Ao contrário de Marcuse ou de Bloch, para os quais era necessário criar uma nova ciência, Eccles acaba por manter a sua fé nas leis da física quântica, a nova "vaca sagrada" adorada e servida pelos seus cientistas-sacerdotes no Templo das Grand Unified Theories: "O que a maior parte dos físicos espera encontrar é uma teoria unificada que explique as quatro forças como diferentes manifestações de uma única força" (Stephen W. Hawking). Apesar destas dificuldades, a última versão da hipótese dos microsites de Eccles, baseada na física quântica, talvez numa versão "idealista", pode abrir novos horizontes, porque é efectivamente mais difícil explicar como da matéria resulta o espírito (monismo materialista) do que compreender a interacção entre duas "entidades" (dualismo interaccionista): o cérebro e a consciência. O interaccionismo é, portanto, melhor hipótese do que o monismo, seja ele materialista ou idealista (Berkeley). Se aceitarmos a antecedência da matéria ou o seu primado sobre o espírito, o materialismo radical, esbarramos sempre nos dois horizontes de Monod: o surgimento da vida (horizonte 1) e o surgimento do espírito humano (horizonte 2). O argumento do bisturi esgrimido pelos fisicalistas é forte: as lesões produzem efectivamente défices mentais, como se a mente fosse equivalente ao cérebro, mas estes défices podem ser devidos à destruição dos sítios onde a mente interage com o cérebro e, por seu intermédio, com o corpo (Eccles).</div>
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<strong>1. Teorias Materialistas</strong>. Karl R. Popper elaborou uma classificação das teorias materialistas ou fisicalistas, a partir de um pressuposto comum, o princípio fisicalista da inviolabilidade do Mundo 1 físico: o mundo físico é auto-contido ou fechado. Isto significa que os processos físicos podem e devem ser explicados e entendidos inteiramente em termos de teorias físicas. Este princípio é comum às quatro grandes teorias materialistas delimitadas por Popper: o materialismo radical, o panpsiquismo, o epifenomenalismo e a teoria da identidade ou teoria do estado central, embora as últimas três teorias admitam a existência de processos mentais. Eccles adopta esta classificação das teorias materialistas, bem como a teoria dos três mundos de Popper, sobre a qual assenta a sua teoria dualista da interacção mente/cérebro. Em termos muito esquemáticos, Popper distingue três mundos reais: o Mundo 1, o universo das entidades físicas, o Mundo 2, o mundo dos estados mentais, incluindo os estados de consciência, as disposições psicológicas e os estados de inconsciência, e o Mundo 3, o mundo dos conteúdos do pensamento e dos produtos da mente humana. Nesta perspectiva pluralista, o mundo compreende, pelo menos, três "submundos ontologicamente distintos", que interagem entre si de uma determinada maneira: os dois primeiros mundos (1 e 2) podem interagir e os dois últimos (2 e 3) também podem interagir, mas os mundos 1 e 3 só podem interagir através da intervenção do mundo 2 das experiências subjectivas ou pessoais.</div>
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Contudo, o trialismo de Popper é insuficiente para explicar a complexidade do mundo, porque, devido ao liberalismo individualista que lhe é subjacente, negligencia ou esquece o Mundo social que, como mundo intrinsecamente histórico (Hegel, Marx), interage directamente com todos os outros mundos definidos por Popper, desempenhando um papel estruturador fundamental sobre o Mundo 2. Isto significa, entre outras coisas, que Popper desprezou a dimensão social da mente individual e que não soube levar em conta o materialismo social na delimitação das teorias materialistas, sendo levado a incluir a linguagem no Mundo 3, como se ela fosse um meio transparente em si mesmo usado sem mácula pela ciência objectiva para "dizer a verdade". Autores tais como Hegel, Marx, Durkheim, Weber, G.H. Mead, William James, J.M. Baldwin, C.H. Cooley, L.S. Vygotsky, A.R. Luria, S. Freud, Jean Piaget, L. Lévy-Bruhl, Mikhail Bakhtin, Abram Kardiner ou Erich Fromm, para já não falar dos linguistas, tais como Saussure ou Benveniste, são completamente ignorados por Popper. Compreende-se o desabafo de Searle: "precisamos redescobrir o carácter social da mente". Porém, Popper não precisava redescobrir, mas falsificar, integrando a teoria de Marx no seio do panpsiquismo, e omitir a matriz teórica capaz de desmentir e denunciar a ideologia que opera na sua filosofia: a apologia da economia de mercado, portanto, do neoliberalismo, cujas afinidades com a teoria de Darwin são gritantes. O primado da dialéctica sobre as teses materialistas não significa materialismo mecânico nem sequer panpsiquismo, de resto desmentido até pela "Dialéctica da Natureza" de F. Engels. Aprendemos a conhecer melhor a alma lendo os poetas: "Mas, mesmo do ponto de vista das coisas insignificantes da vida, nós não somos um todo materialmente constituído, idêntico para toda a gente e de quem cada um apenas tenha de tomar conhecimento, como de um caderno de encargos ou de um testamento; a nossa personalidade social é uma criação do pensamento dos outros" (Marcel Proust).</div>
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<strong>1.1. Materialismo Radical ou Behaviorismo Radical</strong>. Segundo Searle, "a motivação mais profunda para o materialismo é simplesmente o terror da consciência", cuja subjectividade ameaça a objectividade, tal como a concebe Monod: "A pedra angular do método científico é o postulado da objectividade da natureza, isto é, a recusa sistemática em considerar como podendo conduzir a um «verdadeiro» conhecimento toda a interpretação dos fenómenos, dada em termos de causas finais, quer dizer, de «projecto»" (Monod). Porém, Monod sabe que este é um "puro postulado, para sempre indemonstrável, porque, evidentemente, é impossível imaginar uma experiência que possa provar a não existência de um projecto, de um fim a atingir, ou existente na natureza". O receio de Eccles confirma-se: o terror da consciência reflecte basicamente o terror de Deus que o materialismo não pode refutar, embora a invenção da física matemática por Galileu Galilei tenha excluído o espírito da natureza (A.N. Whitehead), cuja natureza não "pode ser descoberta apenas pensando" (G.M. Edelman). Este é o verdadeiro "mistério da consciência", a sua ligação íntima a Deus (W. Pannenberger), que a filosofia e a ciência não conseguem clarificar, recorrendo à sua negação e à negação da própria humanidade, cujos efeitos práticos são simplesmente desastrosos. Seguindo este caminho, a ciência, bem como a filosofia que a acompanha, está a tornar-se uma figura ridícula da consciência humana.</div>
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A meta das neurociências é compreender como o sistema nervoso funciona, mas, como o funcionamento do encéfalo é extremamente complexo, os neurocientistas utilizam a abordagem reducionista: a complexidade é dividida em unidades que são submetidas a uma análise sistemática experimental. Em ordem ascendente de complexidade, os níveis de análise são os seguintes: molecular (neurociências moleculares), celular (neurociências celulares), sistémica (neurociências de sistemas), comportamental (neurociências comportamentais) e cognitivo (neurociências cognitivas). Segundo a teoria neurobiológica actual, o cérebro recebe diversos impulsos que actuam reciprocamente através de todas as interconexões estruturais e funcionais para produzir uma resposta motora integrada. O seu objectivo é formular uma teoria capaz de explicar exaustiva e completamente o comportamento dos animais e do homem, incluindo os comportamentos cognitivos superiores do homem. O materialismo radical está intimamente ligado a esta abordagem neuroreducionista: ele rejeita a existência de processos conscientes ou mentais, os quais são reduzidos a comportamentos ou a tendências para determinados comportamentos. Esta é, portanto, uma interpretação materialista, fisicalista ou behaviorista, que reduz todos os factos e experiências do homem a actividades do cérebro. Até mesmo o behaviorismo menos radical de Skinner nega a importância das experiências conscientes na sua globalidade que nos proporcionam a nossa realidade primária. A interpretação fisicalista é, como observou Popper, consistente em si mesma, apresenta uma solução muito simples e aliciante para o problema corpo/mente, fazendo-o desaparecer, e, à luz da teoria evolucionista, a matéria é anterior aos processos mentais. Por estas razões, o fisicalismo foi aceite, numa ou noutra versão, por filósofos tais como Quine, Ryle, Wittgenstein, Hilary Putnam ou J.J.C. Smart.</div>
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De facto, a maioria dos neurocientistas tende a ser materialista na sua actividade experimental, embora o fisicalismo enquanto filosofia seja impensável: o materialismo radical auto-anula-se. Porém, no seio da própria ciência, têm surgido outras críticas que merecem atenção. Alistar Hardy considerou as concepções monistas actuais que predominam entre os cientistas e alguns humanistas como excessivamente perigosas para o futuro da civilização, porque estas ideias convertem o aspecto espiritual do homem simplesmente num produto superficial de um processo material. O dogma fisicalista é tão injustificado como qualquer dogma da Igreja Medieval. Diversos psiquiatras mostraram que a crença no reducionismo tem um efeito sobre a saúde mental, especialmente sobre a prudência e o juízo do homem contemporâneo. Viktor Frankl acredita que uma das maiores ameaças para a saúde mental é o "vazio existencial". Com efeito, o número de pacientes (20%) afligidos por uma sensação de vacuidade interior, um sentido de total e absoluta falta de sentido da vida, especialmente em face da morte, que recorrem à ajuda clínica, aumenta assustadoramente em todo o mundo, sobretudo nos países ocidentais. Frankl pensa que esta perturbação é o resultado directo e desastroso da negação do valor, característica da moderna sociedade cientificamente orientada, ou seja, da crença de que, como a ciência é em grande medida reducionista quanto à sua técnica, o reducionismo é a única filosofia em que se pode crer. Para Frankl, existe no homem uma tendência intrínseca para procurar significados que possa compreender e valores que possa actualizar. O reducionismo predominante mais não é do que um disfarce do niilismo que, na sua versão actual, deixou de anunciar o "nada" para afirmar simplesmente "nada mais do que". Isto significa que o verdadeiro niilismo não é o existencialismo, que afirmava que o ser humano não é uma coisa entre coisas, mas o reducionismo que, nas escolas e nas universidades, socializa as pessoas, levando-as a crer na concepção reducionista do homem e na visão reducionista da vida. O vazio existencial é, pois, a frustração da força motivacional fundamental do homem: a "vontade de sentido", completamente distinta da vontade de poder dos adlerianos e do desejo de prazer dos freudianos. Hyman confirmou esta perspectiva nos seus pacientes submetidos a cirurgia cerebral: a procura de sentido é uma força motivacional básica do <em>animal symbolicum</em> (Cassirer), que, no fundo, é um homo religiosus.</div>
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<strong>1.2. Panpsiquismo</strong>. O panpsiquismo é uma teoria muito antiga que remonta aos pré-socráticos, em especial aos hilozoístas, passando mais tarde por Campanella, e que foi desenvolvida amplamente por Espinosa e Leibniz. Todas as suas variantes assentam num princípio básico: toda a matéria tem um aspecto íntimo com propriedades mentais e um aspecto exterior com propriedades materiais. Ou seja, a matéria é intrinsecamente dualista. C.H. Waddington, Theodor Ziehen e B. Rensch são biólogos que aderiram ao panpsiquismo, devido à solução que dá ao problema da evolução: à questão de como e quando surgiu a mente no decurso da evolução biológica, o panpsiquismo responde que a mente sempre existiu, como aspecto interior da matéria, embora tenha sido aperfeiçoada progressivamente à medida que aumentava a complexidade do sistema nervoso central. Isto significa que os meros agregados inorgânicos possuem propriedades mentais primitivas, chamadas pré-psíquicas ou protopsíquicas. No decurso da evolução biológica, estas propriedades desenvolveram-se, ao mesmo tempo que crescia a complexidade da organização material, até alcançar o seu ponto máximo de desenvolvimento no cérebro humano, com toda a sua complexidade psíquica. Com esta tese, o panpsiquismo ilude o problema da emergência da mente durante o processo evolucionário.</div>
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<strong>1.3. Epifenomenalismo</strong>. Esta teoria defendida por T.H. Huxley, talvez o primeiro seguidor da teoria de Darwin, admite a existência das experiências mentais, mas afirma que são subprodutos ineficazes e redundantes da actividade do cérebro. Deste modo, Huxley nega a eficácia causal do Mundo 2 de Karl Popper: só os processos cerebrais são decisivos para produzir acções no mundo, ou seja, só os processos físicos são causalmente relevantes. Neste sentido, o epifenomenalismo é uma modificação do panpsiquismo que suprime o elemento "pan", confinando o "psiquismo" aos seres vivos que parecem ser dotados de mente. E, como o panpsiquismo, é uma variante do paralelismo: os processos mentais são paralelos a alguns processos físicos, e ambos podem ser os aspectos internos e externos de uma terceira entidade que desconhecemos.</div>
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<strong>1.4. Teoria da Identidade ou do Estado Central</strong>. A teoria da identidade é basicamente uma modificação do panpsiquismo e do epifenomenalismo, dos quais difere quando afirma que os processos mentais são idênticos a determinados processos cerebrais. Isto significa que há uma certa identidade entre os processos mentais e determinados processos cerebrais. Esta identidade pode ser vista como a identidade que existe entre a "estrela vespertina" e a "estrela matutina", denominações alternativas do mesmo planeta: Vénus. Porém, elas indicam diferentes aparências do planeta Vénus, tal como os processos mentais são vividos a partir do interior (conhecimento por familiarização), enquanto os processos cerebrais são descritos a partir do exterior (conhecimento por descrições teóricas). Assim, os processos mentais interagem com os processos físicos, porque os processos mentais são simplesmente processos físicos, ou melhor, casos especiais de processos cerebrais.</div>
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A teoria da identidade psico-física foi elaborada por Schlick e sobretudo por H. Feigl, sendo posteriormente reformulada por D.M. Armstrong: "Cientificamente, a teoria mais plausível hoje em dia é a da correspondência entre estados mentais, de «um para um» (ou, pelo menos, de «um para muitos»), e os modelos de processos neurofisiológicos. As investigações de Köhler, Adrian, W. Penfield, Hebb, McCulloch e outros, confirmam tal correspondencia na forma de um isomorfismo dos modelos dos campos fenomenais com os modelos simultâneos de processos neurais em várias áreas do cérebro" (H. Feigl). A teoria da identidade tem recebido mais recentemente uma diversidade de designações: interaccionismo emergente (Sperry), panpsiquismo identitário (Rensch), biperspectivismo (Laszlo), naturalismo biológico (Searle) ou materialismo emergentista (Bunge). John R. Searle apresenta uma outra classificação das teorias materialistas, mas, apesar da sua concepção rejeitar o dualismo, o materialismo e o monismo, não deixa de ser mais outra versão materialista, situada ao nível das versões apresentadas pelos seus supostos adversários: Francis Crick, Gerald Edelman, Roger Penrose, Daniel Dennett, David Chalmers, Johnson-Laird, P.S. Churchland, Jean-Pierre Changeux, Michael S. Gazzaniga ou mesmo António Damásio. Nenhum deles apresenta uma solução credível e consensual do problema mente-cérebro que pretendem resolver, acreditando que o crescimento dos conhecimentos neurocientíficos ajudará futuramente a clarificar esse "mistério" (Crick) ou "objecto estranho" (Monod) que é a consciência: o chamado materialismo a prazo ou materialismo promissor (Popper). Ironizando o materialismo, poderíamos dizer que, se o eu é fictício, se a biografia é uma ficção e se a autobiografia é irremediavelmente uma invenção, como afirma Gazzaniga, então as próprias teorias materialistas são ficções narrativamente construídas pelos hemisférios esquerdos dos cérebros destes "eus ficcionais" que levam a sério as suas neuroficções e que pretendem ser levados a sério pelos outros eus-ficções.</div>
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<strong>2. Teorias Dualistas</strong>. A teoria dualista foi aceite pelos pensadores gregos, pelo menos a partir de Homero, e foi retomada e desenvolvida por Descartes, de modo a clarificar as relações entre a alma e o corpo.</div>
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<strong>2.1. Dualismo Cartesiano</strong>. Descartes ilustrou o reflexo comum de retirar um membro do contacto com o fogo como um circuito físico que liga os receptores sensoriais do calor ao músculo: uma mensagem dos receptores de calor viaja até à base da medula espinal, sendo daí transmitida aos músculos apropriados e produzindo uma remoção reflexa. Circuitos deste tipo e os comportamentos por eles desencadeados constituíam o tema adequado da investigação científica, mas a experiência consciente da dor que acompanha o contacto com objectos muito quentes era de natureza completamente diferente, porque, ao contrário dos reflexos, não estava sujeita às leis da ciência física. Os processos físicos eram mensuráveis e, portanto, sujeitos às leis da ciência, enquanto os processos subjectivos eram imateriais e não mensuráveis. Isto significa que, para Descartes, o mundo físico e o mundo mental estavam essencialmente separados, interagindo apenas numa parte do cérebro: a glândula pineal.</div>
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A alma cartesiana é uma substância inextensa mas está localizada num ponto do espaço euclidiano, mais precisamente num pequeno órgão cerebral, a glândula pineal, que é movido instantaneamente pela alma humana, e a partir do qual ela age sobre os "espíritos animais" (antecipações dos sinais eléctricos nervosos) como uma válvula num amplificador eléctrico, direccionando os seus movimentos e, através deles, os movimentos corporais. A maior dificuldade da teoria de Descartes reside no facto dos espíritos animais que são extensos moverem o corpo por impulso e serem, por sua vez, movidos por impulso pela alma humana. Esta solução deriva da própria cosmologia cartesiana que encarava o mundo como um enorme aparelho mecânico, onde os vórtices se engrenavam uns nos outros e se impulsionavam uns aos outros. Os animais e o próprio corpo humano não eram excepções: eram subengrenagens ou autómatos. A única excepção no universo era o movimento voluntário: a mente humana imaterial podia causar movimentos no corpo humano. Porém, esta interacção alma/corpo não se adapta muito bem com a sua cosmologia mecânica: Como pode uma alma inextensa exercer um impulso sobre o corpo espacialmente extenso sem violar nenhuma lei física? Esta dificuldade deriva da teoria cartesiana da causalidade mecânica, segundo a qual toda a causalidade do Mundo 1 é exercida por impulso. Mas, se a teoria interaccionista de Descartes for traduzida em linguagem neurobiológica e a sua noção de causalidade substituída em função da nova física, a dificuldade que foi apontada ao interaccionismo pode ser removida. Popper e Eccles trabalharam nessa possibilidade, de modo a reabilitar o interaccionismo.</div>
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<strong>2.2. Paralelismo</strong>. A versão cartesiana foi rejeitada em proveito de certas formas de paralelismo. A primeira solução para resolver a dificuldade da interacção alma/corpo que decorre da teoria essencialista da causalidade de Descartes foi proposta pelos cartesianos ocasionalistas, entre os quais se destaca Malebranche. O ocasionalismo é a teoria que afirma o carácter miraculoso da causalidade: Deus intervém por ocasião de cada caso particular de acção causal ou interacção alma/corpo. Com esta tese, os ocasionalistas rejeitam o interaccionismo físico-psíquico e substituem-no pelo paralelismo físico-psíquico que recusa a interacção entre a alma e o corpo. O paralelismo cria a aparência de uma interacção: um membro é movido como se tal movimento fosse causado pela vontade, e um órgão sensorial é estimulado, como se a percepção experimentada pela mente fosse causada pelo órgão sensorial. Outros cartesianos, entre os quais Espinosa e Leibniz, procuraram conservar as vantagens do ocasionalismo, evitando o seu carácter miraculoso, isto é, o paralelismo proveniente da intervenção de Deus. Porém, as suas teorias já podem ser vistas como perspectivas materialistas que Popper agrupa no panpsiquismo.</div>
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<strong>2.3. Interaccionismo de Eccles</strong>. Na versão de Eccles, o interaccionismo dualista considera que o espírito e o cérebro constituem entidades independentes: o cérebro pertence ao Mundo 1 e o espírito ao Mundo 2. Estes dois mundos interagem por meio da física quântica e a interacção é bidireccional, sendo concebida não como um fluxo de energia, mas como um fluxo de informação. A obra do físico Margenau ajudou Eccles a reformular a sua teoria, considerando o espírito como um campo, análogo a um campo de probabilidade não-material. Com esta noção, bem com a colaboração posterior do físico quântico Friedrich Beck, Eccles pode afirmar que os acontecimentos mentais agem por meio de um campo de probabilidade quântica, a fim de modificar a probabilidade da emissão das vesículas. Mais precisamente, o intenção mental do eu tem uma acção real no plano neural, "aumentando momentaneamente as probabilidades de exocitose no conjunto de um dendrão, e harmoniza dessa maneira o grande número de amplitudes de probabilidade para produzir uma acção coerente". (Publicado em <span style="color: #ff99ff;"><a href="http://cyberdemocracia.blogspot.com/">CyberCultura e Democracia Online</a></span> e <a href="http://cyberself-neurofilosofia.blogspot.com/"><span style="color: #663366;">Neurofilosofi</span>a</a>.)</div>
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J Francisco Saraiva de Sousa </div>J Francisco Saraiva de Sousahttp://www.blogger.com/profile/10426620453669993201noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-2541577199379953514.post-63585466384625410122009-04-04T11:12:00.000-07:002009-05-19T11:47:39.603-07:00Cérebro Social e Mente<div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;">A neurociência social estuda o comportamento social e a cognição social, usando os métodos moleculares e celulares e os instrumentos da neuro-imagem. A emergência da neurociência social é relativamente recente e apoia-se em três desenvolvimentos: 1) Os estudos de determinadas interacções sociais, tais como o comportamento reprodutivo e os cuidados parentais, revelaram alguns mecanismos moleculares e celulares que, apesar de simples, parecem estar envolvidos em muitos comportamentos sociais (Young & Wang, 2004; Lim et al., 2004: Curtis & Wang, 2005). 2) Os estudos de animais não-humanos que revelaram e identificaram os substratos neurais do comportamento social normal ajudam a compreender e a tratar comportamentos sociais humanos anormais, em especial as perturbações tais como o autismo e a esquizofrenia (Lim et al., 2005). 3) Os estudos que acumularam evidência de que o isolamento social e a separação social são factores de risco de certas perturbações médicas mostram que a interacção social protege contra a doença: a solidão tem um forte efeito negativo sobre a saúde (Esch & Stefano, 2005). Estes desenvolvimentos decorrem, em parte, do conceito de "Umwelt" de von Uexküll (1921), retomado por Konrad Lorenz (1935) numa perspectiva mais ampla, segundo a qual o mundo perceptual do animal deve incluir informação relevante sobre o comportamento de outros indivíduos e do grupo social como um todo. <blockquote></blockquote>Lorenz criou uma bateria de conceitos extremamente revolucionária que ainda não perdeu a sua fertilidade teórica, embora o seu modelo psicohidráulico seja bastante avesso à linguagem neurobiológica. Lorenz defendeu que em cada caso de comportamento instintivo existe um núcleo de automatismo completamente fixo e mais ou menos complexo, o movimento instintivo. Estes automatismos são elementos centrais e essenciais de todo o sistema de comportamentos instintivos de todos os animais e, devido à sua constância, podem ser usados para os estudos filogenéticos e comparativos. Cada comportamento instintivo depende de um certo impulso interno, ou melhor, tende a produzir uma espécie de tensão específica no sistema nervoso central. Se o animal não se encontrar numa situação favorável para a sua descarga, esta energia específica de reacção acumula-se, de modo que o limiar dos estímulos que são efectivos para desencadear esta actividade instintiva particular desce até que, a partir de determinado momento, o instinto se desencadeia sem nenhum estímulo exterior, dando origem à actividade no vazio. Além deste núcleo de automatismo endógeno, existe o comportamento apetitivo que permite ao animal atingir a meta para a qual está adaptada a sequência completa de comportamento. Quando o comportamento apetitivo segue o seu curso apropriado e o animal alcança a sua meta, o comportamento instintivo apropriado é libertado pelo estímulo ou desencadeador, cuja eficácia é devida à existência de um receptor relacionado, isto é, uma organização sensorial que permite ao animal reconhecer o estímulo adequado e actuar de modo apropriado. Este mecanismo desencadeador pode ser inteiramente inato e, portanto, não modificável pela experiência individual. No caso de o animal estar sob a influência de um poderoso impulso e, ao mesmo tempo, impossibilitado para expressar o impulso de forma adequada, pode ocorrer uma actividade de deslocamento. N. Tinbergen (1950) elaborou um modelo alternativo: o modelo hierárquico. <blockquote></blockquote>Nas neurociências cognitivas, usa-se a expressão teoria da mente ou capacidade de mentalização para designar a habilidade para representar estados mentais de si próprio e dos outros, tais como intenções, crenças, vontades, desejos e conhecimento. Esta habilidade é adquirida pelas crianças por volta dos 4 anos de idade e continua a desenvolver-se até aos 11 anos de idade (Baron-Cohen et al, 1999). Os processos de mentalização são usados para a introspecção e, sobretudo, para socializar com os outros (Brothers, 1997; Byrne & Whiten, 1992). Esta capacidade pode ser vista como resultado da inteligência social, a qual inclui a habilidade para reconhecer os outros da mesma espécie, para conhecer o seu próprio lugar na sociedade, para aprender com os outros e para ensinar novas tarefas aos outros. Um dos aspectos mais estudados da inteligência social é a capacidade para compreender e manipular os estados mentais das outras pessoas e para alterar o seu comportamento. Os primatas são particularmente hábeis para predizer o comportamento de outros congéneres. O mecanismo pelo qual nós representamos e predizemos o comportamento dos outros tem sido interpretado a partir de duas perspectivas teóricas diferentes: a primeira perspectiva deriva da filosofia da mente, mais precisamente da folk psychology, e é denominada "Theory Theory" (TT), e a segunda perspectiva é chamada "Simulation Theory" (ST). Segundo a TT, o nosso senso comum compreende o comportamento dos outros em termos da intervenção de estados mentais, tais como intenções, desejos e crenças, a partir dos quais as pessoas actuam. Por outras palavras, o nosso conhecimento de outras mentes está incorporado numa teoria simbólica explícita na folk psychology, dotada de axiomas e regras de inferência, da qual podemos inferir o que os outros conhecem e querem. A ST encara a nossa habilidade para reconhecer e raciocinar sobre os estados mentais dos outros como um exemplo da experiência de projecção: nós simulamos mentalmente os processos de pensamento e os sentimentos dos outros, utilizando os nossos próprios estados mentais como modelos dos estados mentais dos outros. Ou seja, nós conhecemos as outras mentes ou por empatia (TT) ou por simulação (ST). A evidência empírica acumulada ainda não permite decidir entre estas duas teorias concorrentes. Diversos modelos neurobiológicos (Baron-Cohen & Ring, 1994; Brothers, 1992; Frith & Frith, 2001) foram propostos para explicitar as bases neurais da Teoria da Mente. O modelo da cognição social elaborado por Brothers destaca o circuito que conecta o córtex orbitofrontal, o sulco temporal superior e a amígdala. Se este circuito for interrompido nalgum ponto, o autismo pode ser produzido. Frith & Frith sugerem um modelo da interacção social que destaca o sulco temporal superior, o córtex pré-frontal medial, incluindo o córtex cingulado anterior, e algumas partes da amígdala. A partir de uma revisão da literatura disponível, Abu-Akel (2003) considera que as regiões envolvidas no processo de mentalização são as seguintes: a representação dos seus próprios estados mentais é suportada pela região do lóbulo temporal inferior (IPL), a representação dos estados mentais dos outros ocorre na região do sulco temporal superior (STC), os estados mentais representados nestas regiões são enviadas para o sistema límbico-paralímbico responsável pela interpretação e regulação sócio-emocional, e a informação processada é depois projectada para as regiões do córtex pré-frontal ventral e dorso-medial (MPFC) e do córtex frontal inferolateral (ILFC) que aplicam o processo. Este modelo neurobiológico tem importantes consequências clínicas e é claramente favorável à TT. Esta teoria incentivou o aparecimento de uma nova disciplina: a neuro-economia que estuda a recompensa e o sistema de mentalização na tomada de decisões económicas (Prospect Theory), bem como a confiança, dando origem ao neuromarketing (Walter et al., 2005; Trepel et al., 2005). <blockquote></blockquote>Há um cérebro social humano? Os seres humanos são animais excessivamente sociais, mas os substratos neurais do comportamento e da cognição sociais ainda não são completamente conhecidos. Os estudos realizados com seres humanos e outros primatas têm revelado diversas estruturas neurais que desempenham um papel chave na construção dos comportamentos sociais: a amígdala, os córtices frontais ventromediais, e o córtex somatossensorial direito, entre outras estruturas (Adolphs, 1999), que parecem mediar as representações perceptuais de estímulos socialmente relevantes. Estes estudos possibilitaram elaborar a Hipótese do Cérebro Social ou Hipótese da Inteligência Maquiavélica. A sua formulação evolucionária foi feita por Robin I.M. Dunbar (1998, 2003), que, com base em sólida evidência empírica, a apresentou como alternativa às estratégias ecológicas, capaz de explicar os cérebros grandes dos primatas pelas exigências e pressões selectivas impostas pelos sistemas sociais complexos característicos desta ordem. O cérebro dos primatas é essencialmente um cérebro executivo, principalmente o neocórtex responsável pelos aspectos fundamentais da cognição social, em particular pela teoria da mente. Jean-Pierre Changeux reconheceu que a mais-valia da divergência evolutiva que conduziu ao Homo sapiens foi precisamente "o alargamento das capacidades de adaptação do encéfalo ao meio ambiente, acompanhado de um evidente aumento das aptidões para criar objectos mentais e para os combinar entre si". Se tivesse usado o termo construção, em vez de adaptação, Changeux teria apreendido a noção evolutiva do cérebro social, precisamente aquele que sofreu e sofre na sua evolução filogenética e no seu desenvolvimento ontogenético as marcas originais e indeléveis dos laços sociais, da "comunicação entre os indivíduos" e da cultura, o produto mais complexo da mente humana. Não foi a mera adaptação a um meio ambiente dado que desencadeou o aumento do encéfalo, mas a própria complexidade das sociedades dos primatas que culmina com as sociedades humanas. Neste sentido, a evolução do cérebro revela o aparecimento de propriedades que melhoram a sua capacidade de actuação à custa da redução da sua auto-suficiência funcional: o cérebro humano torna-se dependente dos recursos culturais e sociais para o seu próprio funcionamento. Isto significa que estes recursos são constitutivos da própria actividade mental. <blockquote></blockquote>A percepção social dos primatas é fundamentalmente visual, embora sinais auditivos, somatossensoriais e olfactivos contribuam para identificar as crias, o género e indivíduos familiares. A percepção da face tem sido muito estudada e diversos estudos mostraram que as células do córtex temporal dos macacos respondem às faces (Tsao et al., 2003). Os estudos de fMRI em seres humanos revelaram o processamento cortical de um tipo específico de estímulos visuais e a área fusiforme foi envolvida no reconhecimento de faces (Gauthier et al., 2000; Kanwisher et al., 1997). Lesões nesta região cerebral produzem défices na recognição de faces e reduções significativas no volume da sua matéria cinzenta foram observadas em pacientes com esquizofrenia crónica que manifestavam dificuldade com a recognição de faces (Onitsuka et al., 2003). O circuito da informação social foi identificado por dois estudos de fMRI (Castelli et al., 2002; Martin & Weisberg, 2004) que, em vez focarem a sua atenção sobre objectos sociais, procuraram saber como o cérebro responde enquanto atribui interacção social a imagens abstractas: o circuito identificado compreende o segmento lateral do giro fusiforme, o sulco temporal superior, a amígdala e o córtex pré-frontal ventromedial, um circuito envolvido na percepção social de primatas não-humanos (Brothers, 1990) e na cognição social humana (Adolphs, 2001). A amígdala está implicada na recognição das emoções sociais (culpa, arrogância) e na percepção do medo (Adolphs et al., 2002; Amaral et al., 2003; Kesler et al., 2001). O córtex pré-frontal ventromedial está fortemente conectado com a amígdala (Steffanaci & Amaral, 2002) e foi associado ao prazer subjectivo (Kringelbach et al., 2003), ao julgamento social (Bechara et al., 1997) e ao processamento de vocalizações sociais nos primatas não-humanos (Romanski & Goldman-Rakic, 2002). Quanto à motivação social, foram realizados diversos estudos de fMRI: o estudo de Bartels & Zeki (2000) sobre amor e perda mostrou que o striatum, a ínsula medial e o córtex anterior do cíngulo estão implicadas na vinculação romântica, e o estudo de Eisenberger et al. (2003) revelou que o córtex anterior do cíngulo e o córtex pré-frontal ventral direito estão envolvidos na resposta à exclusão social, bem como à sensibilidade da dor física (Eisenberger et al., 2006). <blockquote></blockquote>A identificação do circuito social no cérebro humano é de grande importância para identificar a neuropatologia do autismo (Lord et al., 2000). Esta perturbação do neurodesenvolvimento é definida por défices no comportamento social recíproco e na linguagem, bem como pela presença de comportamentos estereotipados. As crianças com autismo apresentam ausência de motivação social, tal como é medida pelo contacto visual e pelo interesse em olhar para faces (Klin et al., 2002). Embora não ocorram graves anormalidades no cérebro autista, os estudos de fMRI mostraram que as pessoas com autismo não activam o giro fusiforme quando confrontadas com faces (Schultz et al., 2000). Isto pode indicar a ausência de atenção para faces ou o colapso crítico da habilidade para processar faces. Porém, os indivíduos com autismo são inteligentes na realização de diversas tarefas, excepto nas do domínio social. Estudos clínicos mostraram que as crianças que cresceram com privação social exibem comportamentos do tipo autista e défices permanentes na vinculação (O'Connor et al., 2003). A identificação dos genes que contribuem para as síndromes clínicas, tais como Fragil X Syndrome (Brown et al., 2001) e Rett Syndrome (Shahbazian & Zoghbi, 2002), mostraram que esses genes agem nas vias que medeiam a informação social. E, como revelam estudos recentes, o mesmo sucede com o autismo (Lim et al., 2004; Bielsky et al., 2005; Hammock & Young, 2005; Carter, 2007), a Asperger Syndrome (Ashwin et al., 2006), a Williams Syndrome (Tager-Flusberg et al., 1998) e a esquizofrenia. (Publicado <strong><a href="http://cyberdemocracia.blogspot.com/2008/11/crebro-social-e-teoria-da-mente.html">aqui</a></strong>.) <blockquote></blockquote>J Francisco Saraiva de Sousa</span></div>J Francisco Saraiva de Sousahttp://www.blogger.com/profile/10426620453669993201noreply@blogger.com8tag:blogger.com,1999:blog-2541577199379953514.post-54591444800308318642008-10-28T12:21:00.000-07:002009-05-19T11:46:06.293-07:00O Problema da Realidade<div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;">«Por estranho que pareça, (as Ideias da Razão Pura de Kant) têm um significado definido para a nossa prática (quotidiana). Podemos agir como se existisse Deus; sentir como se fossemos livres; considerar a Natureza como se ela andasse cheia de propósitos especiais; fazer planos como se devêssemos ser imortais; e verificamos então que essas palavras determinam uma genuína diferença na nossa vida moral./ O sentimento de realidade pode, de facto, ligar-se de maneira tão robusta ao nosso objecto de crença que toda a nossa vida é polarizada de fio a pavio, por assim dizer, pelo sentido que damos à existência da coisa em que acreditamos, embora dificilmente possamos dizer que essa mesma coisa, para a finalidade de uma descrição definida, esteja presente na nossa mente./ A determinabilidade absoluta da nossa mente por abstracções é um dos factos cardeais da nossa constituição humana./ Todo o conjunto dos nossos exemplos leva a uma conclusão parecida a esta: É como se houvesse na consciência humana um sentido de realidade, um sentimento de presença objectiva, uma percepção do que podemos chamar "alguma coisa ali", mais profunda e mais geral do que qualquer um dos "sentidos" especiais e particulares pelos quais a psicologia actual supõe que as realidades existentes sejam originalmente reveladas». (<strong>William James</strong>) <blockquote></blockquote>Em 1890, William James (1842-1910) publica o seu livro "<em>Princípios de Psicologia</em>", onde logo no início afirma que "a psicologia é a ciência da vida mental, tanto dos seus fenómenos como das suas condições". O termo "fenómenos" é usado para indicar que o objecto de estudo da psicologia (funcional) está presente ou se manifesta na experiência imediata, e o termo "condições" refere-se ao papel primordial desempenhado pelo corpo, em especial pelo cérebro, na vida mental. O ponto focal dos seus interesses reside fundamentalmente na consciência, cuja experiência James recusa reduzir artificialmente a supostos elementos, como faz a <strong>abordagem estrutural</strong> de Wundt: a experiência consciente não é um grupo ou uma mistura de elementos, a chamada <strong>falácia do psicólogo</strong>, mas uma unidade, um processo, isto é, uma experiência total em constante mudança. Segundo James, a consciência flui como um rio ou uma corrente e, sendo um fluxo de consciência, não pode ser subdividida em elementos temporariamente distintos ou discretos. Além do <strong>fluxo de consciência</strong> (1), James destaca outras características da consciência: a consciência é pessoal ou <strong>individual</strong>, isto é, pertence a uma única pessoa (2); é sensivelmente <strong>contínua</strong>, isto é, não há rupturas claras no fluxo de consciência, e, quando irrompem hiatos temporais tais como o sono, a identidade individual é sempre mantida, porque, ao acordar, a pessoa estabelece facilmente uma ligação com o fluxo de consciência que estava em andamento antes da interrupção (3); é <strong>selectiva</strong>, isto é, a mente filtra os muitos estímulos a que está exposta e selecciona aqueles que são relevantes para a sua experiência, prestando-lhes atenção, de modo a operar de maneira lógica e percorrer racionalmente até ao fim uma série de ideias (4); e, finalmente, ocorre tanto de uma <strong>forma transitiva</strong> (estados limítrofes de consciência) como <strong>substantiva</strong> (conteúdos claros e estáveis), isto é, as ideias «entram» na consciência como transitivas, marginais quanto à atenção e frequentemente fugidias, podendo passar à forma substantiva, adquirindo maior estabilidade (5). James destaca outros dois aspectos fundamentais da vida mental: a consciência não é distinta do corpo (6), o que lhe permitiu rejeitar todas as teorias da mente/corpo e elaborar a sua própria perspectiva (1909), e tem uma finalidade ou <strong>utilidade biológica</strong>, a de tornar o homem um animal melhor adaptado ao meio e mais apto para escolher (7). A escolha consciente é distinta do <strong>hábito</strong>, involuntário e inconsciente: a consciência envolve-se sempre que surge um novo problema ou sempre que é necessário operar um novo ajustamento. <blockquote></blockquote>Num dos capítulos mais importantes da obra, James coloca a questão que nos interessa: "Sob que circunstâncias consideramos as coisas como sendo reais?" A partir desta questão James desenvolve a sua teoria das diversas <strong>ordens de realidade</strong> ou <strong>subuniversos</strong>. Segundo James, toda a distinção entre o real e o irreal baseia-se em dois «factos» mentais: todos somos propensos a pensar de modo diferente sobre o mesmo objecto e, quando o fazemos, podemos escolher o modo de pensar a que queremos aderir e ignorar outros modos de pensar. Isto significa que a origem e a fonte de toda a realidade residem sempre em nós: qualquer objecto que não for refutado é, ipso facto, uma realidade que acreditamos e pressupomos «absoluta». Um objecto pensado a partir de outro não pode ser «desmentido», a menos que se inicie uma controvérsia afirmando algo inaceitável sobre o primeiro, e, neste caso, o proponente deve escolher o objecto a que vai dar o seu assentimento. Segundo James, todas as proposições, sejam atributivas ou existenciais, são objecto de crença pelo próprio facto de serem concebidas, afirmando-se que os seus termos são os mesmos dessas outras proposições. A disputa só emerge quando essas proposições entram em conflito com outras proposições nas quais também acreditamos. De modo simples, podemos afirmar que, para James, <strong>o real é aquilo em que acreditamos</strong>. Charles S. Peirce já tinha desenvolvido uma teoria idêntica: "A realidade, como qualquer outra qualidade, consiste nos efeitos sensíveis peculiares que as coisas que nela tomam parte produzem. O único efeito que as coisas reais têm é causar crença, pois todas as sensações que elas excitam emergem na consciência sob a forma de crenças". Porém, de modo diferente de James, Peirce é tentado pelo positivismo, isto é, pela ideia da superioridade do conhecimento científico: "A questão, portanto, é como distinguir a crença verdadeira (ou crença no real) da crença falsa (ou crença em ficção). (...) As ideias de verdade ou falsidade, no seu desenvolvimento pleno, pertencem exclusivamente ao método experimental de estabelecimento de opinião./ A opinião que está destinada a merecer o acordo de todos os que investigam é o que nós chamamos verdade. O objecto representado nesta opinião é o real. Eis como eu explicaria a realidade". <blockquote></blockquote>Ora, se a origem e a fonte de toda a realidade residem em nós, então existe um número considerável, provavelmente infinito, de diferentes ordens de realidade, às quais James chama subuniversos. Cada uma destas ordens tem o seu estilo peculiar de existência, encontra-se separada das outras e implica o seu próprio estilo cognitivo e formas peculiares de consciência. James refere algumas dessas ordens de realidade: o <strong>mundo dos sentidos</strong> ou das "coisas físicas", que são experienciadas pelo senso comum e que constitui a realidade vital predominante, na qual estamos mergulhados desde a concepção e nascimento até à morte; o <strong>mundo da ciência</strong>; o <strong>mundo das relações ideais</strong>; o <strong>mundo dos ídolos da tribo</strong>, em especial o das ideologias; os <strong>mundos sobrenaturais</strong> da mitologia e da religião; os numerosos mundos da opinião individual; e, finalmente, os numerosos <strong>mundos da pura fantasia</strong> e da loucura. Todo o objecto em que pensamos refere-se, pelo menos, a um destes mundos ou a outro mundo que podemos acrescentar à lista de subuniversos. Cada um destes mundos, enquanto desperta a nossa atenção, é real à sua própria maneira, porque, como já dizia Aristóteles, há muitas maneiras de dizer o ser, e, qualquer que seja a sua relação com a nossa mente, se não houver uma relação mais forte com a qual entre em conflito, será suficiente para tornar este objecto real. James captou o sentido da realidade, mas analisou-o em termos de uma <strong>psicologia da crença e da incredulidade</strong>. Na peugada de Husserl, para quem "todas as unidades reais são «unidades de significado»", Alfred Schutz prefere falar em <strong>âmbitos de sentido </strong>ou <strong>províncias de sentido</strong>, em vez de subuniversos, porque "o que constitui a realidade é o sentido das nossas experiências e não a estrutura ontológica dos objectos". Para Schutz, um âmbito de sentido é "um determinado conjunto das nossas experiências", que exibem um estilo cognitivo específico e que são, a este respeito, coerentes em si mesmas e compatíveis umas com as outras. <blockquote></blockquote>A <strong>teoria fenomenológica das realidades múltiplas</strong> de Schutz, que inspira directa ou indirectamente as actuais teorias de Perter Berger & Thomas Luckmann, de Jerome Bruner ou mesmo de Paul Watzlawick, pode ser resumida em seis teses fundamentais: 1ª) Todos os mundos da lista de James são <strong>âmbitos finitos de significado</strong>. Isto quer dizer que têm um estilo cognitivo peculiar, que as experiências, no seio de cada um desses mundos, são, no que respeita ao estilo cognitivo, coerentes em si mesmas e compatíveis umas com as outras e que cada um destes mundos pode receber um valor de realidade específico. 2ª) A <strong>coerência</strong> e a <strong>compatibilidade</strong> das experiências em relação ao seu estilo cognitivo peculiar subsiste unicamente dentro dos limites do âmbito particular de sentido ao qual pertencem. 3ª) Por isso, quando falamos de âmbitos finitos de sentido, a <strong>finitude</strong> implica que não podemos referir um desses âmbitos a outro, introduzindo uma fórmula de transformação. A transição de um para outro âmbito de sentido só pode ser efectuada através daquilo a que Kierkegaard chamou um "<strong>salto</strong>" e a que a antropologia cultural e social chama "<strong>choque cultural</strong>", que se manifesta na experiência subjectiva de uma comoção. 4ª) A <strong>comoção</strong> mais não é do que uma modificação radical na tensão da nossa consciência, fundada numa <strong>attention à la vie</strong> diferente. 5ª) A cada um dos <strong>estilos cognitivos</strong> peculiares corresponde uma tensão específica da consciência e, por conseguinte, uma epoché específica, uma forma predominante de espontaneidade, uma forma específica de experiência de si mesmo, uma forma específica de sociabilidade e uma perspectiva temporal específica. 6ª) O <strong>mundo do executar quotidiano</strong> constitui o arquétipo da nossa experiência da realidade e todos os outros âmbitos de sentido podem ser vistos como suas modificações. Isto significa que, diante do mundo comum dotado de uma forte valência ontológica, os outros mundos são "<strong>quase-realidades</strong>" ou, como diz Bruner, <strong>realidades virtuais</strong>. A dificuldade que revelam os outros mundos em obter um valor de realidade reside precisamente na linguagem, porque esta pertence, como comunicação, ao mundo do executar intersubjectivo e, por isso, resiste obstinadamente a servir de veículo de significados que transcendam as suas próprias pressuposições. Até mesmo a terminologia científica que procura superar esta dificuldade, dentro do seu limitado campo, não tem conseguido abdicar da linguagem ordinária. <blockquote></blockquote>Destes mundos aquele que todos partilhamos é o <strong>mundo do senso comum</strong> ou, simplesmente, o <strong>mundo comum</strong>: o seu valor de realidade é imenso, porque é o nosso mundo da vida quotidiana, e, por isso, diante dele, os restantes mundos são meras "províncias" ou meros "anexos" insuficientes para nos orientar na vida. Ou, como diz Alfred Schutz, "o mundo do executar quotidiano é o arquétipo da nossa experiência da realidade e todos os demais âmbitos de sentido podem ser considerados como suas modificações". Até mesmo Karl Popper definiu a ciência e a filosofia como "<strong>senso comum esclarecido</strong>", retendo o "realismo" do senso comum e rejeitando a sua teoria do conhecimento, a <strong>teoria do balde mental</strong> (indutivismo), que substitui pela <strong>teoria do holofote</strong> (dedutivismo). Qualquer dos outros mundos que entre em rota de colisão com o mundo eminente corre o risco de perder credibilidade e plausibilidade. No mundo comum, onde vivemos, donde partimos e ao qual regressamos, embora num único dia a nossa consciência possa passar pelas mais diversas tensões e adoptar as mais diversas atitudes de atenção à vida (Bergson), conduzimos e assumimos a nossa vida sem questionar o seu <strong>acervo de conhecimentos</strong> e de experiências. <strong>O mundo comum é o lar, o berço e o suporte, de toda a realidade</strong>, diante da qual até mesmo a "loucura", o mundo da cavalaria, de Dom Quixote ruiu, como mero devaneio retrógrado e saudosista. Alfred Schutz e Hannah Arendt dedicaram muita atenção ao mundo comum, o mundo da vida quotidiana que o homem adulto em estado de vigília que actua nele e sobre ele, entre os seus semelhantes, experimenta, dentro da atitude natural, como uma realidade, e vale a pena retomar as suas perspectivas. <strong>Mundo da vida quotidiana</strong> significa, segundo Schutz, "o mundo intersubjectivo que existia muito antes do nosso nascimento, experimentado e interpretado por Outros, os nossos predecessores, como um mundo organizado". Este mundo é dado à nossa experiência e está aberto à nossa interpretação, que se baseia num "acervo de experiências" anteriores, nas nossas próprias experiências e nas experiências que nos foram transmitidas pelos nossos pais e mestres, as quais funcionam como um "esquema de referência" sob a forma de "<strong>conhecimento à mão</strong>". Para a <strong>atitude natural</strong>, o mundo comum é um mundo de objectos circunscritos, com qualidades definidas, entre os quais nos movemos, que nos resistem e sobre os quais podemos agir. Não é um "mundo privado", como o do devaneio de Bachelard, mas um "mundo intersubjectivo", comum a todos nós mortais, no qual temos um interesse, não teórico, mas profundamente prático: "O mundo da vida quotidiana é, como diz Schutz, o cenário e também o objecto das nossas acções e interacções". Isto significa que o mundo é algo que devemos modificar e mudar através das nossas acções e que também modifica as nossas acções. Além disso, neste mundo do executar quotidiano, existem outros semelhantes com os quais interagimos socialmente: actuamos sobre coisas e sobre os nossos semelhantes, em especial os contemporâneos, de tal modo que eles nos induzem a agir e nós os induzimos a reagir. Estas interacções sociais supõem a comunicação, a qual se funda em actos executados de modo a comunicar com os outros. <blockquote></blockquote>Em suma, as características básicas que constituem o <strong>estilo cognitivo</strong> específico do mundo comum são as seguintes: 1) uma <strong>tensão específica da consciência</strong>, mais precisamente a atitude alerta que se origina numa plena atenção prestada à vida: a vida quotidiana é experimentada num estado de total vigília; 2) uma <strong>epoché específica</strong>, a epoché da atitude natural, que consiste em suspender a dúvida na existência do mundo externo e dos seus objectos: a vida quotidiana aparece já objectivada antes da nossa entrada em cena e, por isso, é considerada como normal e evidente; 3) uma <strong>forma predominante de espontaneidade</strong>, a execução, dotada de sentido, baseada num projecto e caracterizada pela intenção de produzir o estado de coisas projectado mediante movimentos corporais que se inserem no mundo externo: a realidade da vida quotidiana está organizada em torno do "aqui" do meu corpo e do "agora" do meu presente; 4) uma <strong>forma específica de experimentar</strong> o próprio si mesmo: o si mesmo executante como si mesmo total; 5) uma <strong>forma especifica de sociabilidade</strong>: a realidade da vida quotidiana constitui um mundo intersubjectivo comum da comunicação e da acção social, no qual participamos com outros homens; e 6) uma <strong>perspectiva temporal específica</strong>: o tempo padronizado que se origina numa intersecção entre a <em>durée</em> e o tempo cósmico como estrutura temporal universal do mundo intersubjectivo. As nossas experiências do mundo comum partilham este estilo cognitivo e, por isso, podemos encará-lo como real. Na nossa atitude natural, somos induzidos a dar valor de realidade ao mundo comum: as nossas experiências práticas provam a sua unidade e congruência, a sua validade, e a sua realidade parece ser irrefutável, embora este mundo seja histórico e, como tal, capaz de assimilar outros conhecimentos forjados noutros âmbitos de sentido, como mostraram Gramsci e Bakhtin. A realidade do mundo comum é, portanto, para nós, perfeitamente natural. <blockquote></blockquote>A atitude natural é a atitude da <strong>consciência do senso comum</strong>, porque se refere a um mundo que é comum a todos os homens, e o conhecimento do senso comum é o conhecimento que cada um de nós partilha com os outros nas interacções sociais e nas rotinas normais e evidentes da vida quotidiana. Estamos completamente mergulhados desde o nascimento até à morte neste mundo comum e no seu <strong>conhecimento de senso comum</strong>: os restantes mundos são uma espécie de <strong>enclaves</strong>, isto é, regiões que pertencem a outros âmbitos de sentido encerradas no âmbito maior do mundo comum. A partir de uma leitura de Kant, Hannah Arendt lembra que o senso comum é mais do que o <strong>sentido comum</strong> a todos os homens: é "o sentido que nos integra numa comunidade juntamente com os outros, nos torna membros dela e nos habilita a comunicarmos coisas que nos são dadas pelos nossos cinco sentidos privados". Isto significa que "a comunidade entre os homens produz um sentido comum", o senso comum, o qual, como "mãe do juízo", nos permite superar o capricho pessoal em direcção a uma "<strong>mentalidade alargada</strong>": a validade dos juízos é intersubjectiva. Para Hannah Arendt, "o único atributo do mundo que nos permite avaliar a sua realidade é o facto de ser comum a todos nós; e, se o senso comum tem posição tão alta na hierarquia das qualidade políticas, é por ser o único factor que ajusta à realidade global os nossos cinco sentidos estritamente individuais e os dados rigorosamente particulares que eles registam". Alguns dos outros subuniversos estão a produzir ou, pelo menos, a contribuir para a alienação ou <strong>alheamento do mundo</strong>, dificultando a promoção da <strong>cidadania mundial</strong> almejada por Kant e, promovendo em seu lugar, uma <strong>dispersão de opiniões dogmáticas</strong> que perderam o vínculo com o mundo comum. A perda do mundo comum poderá significar a morte da própria humanidade. (Publicado<strong><a href="http://cyberdemocracia.blogspot.com/2008/09/o-problema-da-realidade.html"> AQUI</a></strong>.) <blockquote></blockquote>J Francisco Saraiva de Sousa</span></div>J Francisco Saraiva de Sousahttp://www.blogger.com/profile/10426620453669993201noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2541577199379953514.post-65360550012210270132008-04-14T04:40:00.000-07:002009-05-19T11:46:38.916-07:00Uma Abordagem Histórica da NeuroFilosofia<div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;">Este ainda é um blogue fantasma que reconduz a outro meu blogue "<strong>NeuroFilosofia</strong>", cujo endereço é: </span><a href="http://cyberself-neurofilosofia.blogspot.com/">http://cyberself-neurofilosofia.blogspot.com/</a>.</div><blockquote></blockquote><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;">Charles Lumsden & Edward Wilson (1987) afirmam que a filosofia consiste maioritariamente em teorias falhadas sobre o cérebro. Embora aceite, com algumas reservas, esta definição de filosofia, duvido, no entanto, que as teorias filosóficas sobre o cérebro, em particular a filosofia de Marx mencionada pelos autores, sejam quase todas teorias falhadas. Embora determinadas teses filosóficas defendidas por Marx, em particular o papel determinante desempenhado pelas estruturas social, económica, política e ideológica na sobredeterminação da «personalidade» e do carácter social, possam ser confirmadas pelas neurociências, nomeadamente pela teoria epigenética da estabilização selectiva das sinapses, prefiro analisar o modelo cerebral proposto por Descartes, uma vez que ele marca de forma decisiva a história da filosofia e das neurociências. Resulta daqui que a história das neurociências é inseparável da história da filosofia, talvez pelo facto da filosofia ser, em última análise, uma teoria do sistema nervoso, isto é, a neurociência por excelência. Mas há uma outra razão para destacar Descartes: o seu conceito «pragmático» de Filosofia. Algumas noções gerais sobre física, às quais podemos acrescentar as noções sobre medicina, fisiologia, biologia, embriologia e «neurobiologia», como escreve Descartes (1981), «mostraram-me que é possível chegar a conhecimentos muito úteis à vida e que em vez dessa filosofia especulativa que se ensina nas escolas se pode encontrar uma outra prática (da filosofia) que, conhecendo o poder e as acções do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam, tão distintamente como conhecemos os diversos misteres dos nossos artífices, os poderíamos utilizar de igual modo em tudo aquilo para que servem, tornando-nos assim como que senhores e possuidores da natureza».</div><blockquote></blockquote><div align="justify">Dois problemas tradicionais para as investigações experimentais e teóricas no domínio do cérebro dominam a história conjunta da filosofia e das neurociências: a hipótese do cérebro, a ideia de que o cérebro é a fonte do comportamento, e a hipótese do neurónio, a ideia de que a unidade da estrutura e da função do cérebro é o neurónio. Cada uma destas hipóteses comporta grosso modo uma hipótese contrária: tese cefalocentrista versus tese cardiocentrista, e tese neuronista versus tese reticulista.</div><blockquote></blockquote><div align="justify"><strong>HIPÓTESE DO CÉREBRO</strong>. O termo cérebro aparece individualizado, pela primeira vez, num papiro egípcio que data do século XVII antes da nossa era, mas trata-se provavelmente da cópia de um texto anterior, do Antigo Império, escrito por volta dos anos 3000. Desde os primeiros tempos o homem acreditou que o seu comportamento era controlado por uma alma, um espírito ou um sistema racional (Breasted, 1930; Elsberg, 1945). A filosofia pré-socrática não é unânime quanto ao problema das relações entre o cérebro e o comportamento: Alcméon de Crotona e Demócrito de Abdera localizam os processos mentais no cérebro, enquanto Empédocles de Agrigento localiza-os no coração. Surgiram assim duas teses, a cefalocentrista e a cardiocentrista, que serão defendidas, em novas bases, pelos precursores de Sócrates. Platão desenvolve o conceito de alma tripartida e situa a sua parte racional no cérebro porque esta era a parte do corpo mais próxima dos céus. Mas Aristóteles, embora tenha um bom conhecimento da estrutura do cérebro, observando mesmo que de todos os animais o homem é aquele que tem o cérebro maior em função ao seu tamanho corporal, retoma a hipótese cardíaca e situa os processos mentais no coração, o que ir baralhar os espíritos durante séculos até ao século XVIII. <blockquote></blockquote>Hipócrates e Galeno adoptam a hipótese do cérebro, o primeiro a partir da observação clínica e o segundo, que não se contenta com a descrição anatómica dos órgãos nervosos realizada por Herófilo e Erasístrato, a partir da fisiologia cerebral. Nemésio e Santo Agostinho localizam as três funções da alma racional, a imaginação, a razão e a memória, respectivamente nos ventrículos anterior, médio e posterior. Deste modo, os Padres da Igreja primitiva assinalavam em regiões delimitadas do cérebro funções especializadas e «propunham» o primeiro modelo de localização cerebral. A Renascença retoma a dissecação de animais e principalmente de cadáveres: Leonardo da Vinci, Vesalius, Varólio e Fresnel elaboram descrições cada vez mais desenvolvidas da morfologia cerebral, cuja complexidade se reconhece. O esquema simplista de Nemésio é substituído por quadros anatómicos. Resulta daí que progressivamente os ventrículos, demasiado simples, são abandonados como sede das funções psíquicas em favor das partes sólidas, da própria substância do cérebro.</div><blockquote></blockquote><div align="justify">Mas o conhecimento de que o cérebro controla o comportamento não é suficiente, uma vez que a formulação de uma hipótese completa e sistemática requer o conhecimento de como ele controla o comportamento. Os modelos da localização da função dirigem-se nesse sentido. O conceito de localização da função expressa que determinados comportamentos são controlados por determinadas áreas do cérebro. Actualmente, o conceito foi alargado e é utilizado geralmente para dar a entender que as funções estão distribuídas entre distintos segmentos do neocórtex. O desenvolvimento desta ideia dependia da resolução de dois outros problemas: saber se os processos mentais eram o produto do cérebro ou da mente, e localizar o controlo dos distintos aspectos do comportamento no interior do cérebro. <blockquote></blockquote>Ora, um dos primeiros filósofos a procurar solucionar estes dois problemas foi René Descartes. O conceito platónico da alma tripartida foi substituído por o de uma mente unitária que é raciocínio ou alma racional. A mente não é um ser material nem sequer possui grandeza espacial. Por conseguinte, ela é fundamentalmente distinta do corpo. Este é uma máquina material que possui grandeza espacial: ele responde reflexivamente a mudanças sensoriais mediante a acção do cérebro. Os animais são distintos do homem, uma vez que só possuem corpos e mentes não racionais. Daí que o seu comportamento possa ser explicado como uma acção puramente mecânica. Mas o homem é muito mais «complexo» do que o animal: tem corpo e alma racional. O seu comportamento exige uma explicação mais «complexa», uma vez que requer que se considerem conjuntamente as funções da mente e do corpo. A mente e o corpo estão separados, mas podem interactuar entre si. Descartes coloca assim, pela primeira vez, o problema da mente e do corpo, a saber: Qual é a relação entre a mente e o corpo?, ou, mais simplesmente, como interactuam? Este problema recebeu soluções diferentes: as mais conhecidas opõem os dualistas aos monistas. Embora defendam que a mente e o corpo estão separados, os dualistas dividem-se quanto à solução a dar ao problema: uns afirmam que os dois interactuam de modo causal, mas, como não conseguiram de forma convincente explicar como interactuam, apareceram outros dualistas que evitaram a dificuldade ao mostrar que os dois «elementos» funcionam em paralelo sem interactuar ou que o corpo pode afectar a mente mas esta não pode afectar o corpo. Mas ambas as tendências permitem teorizar acerca do comportamento sem levar em conta a mente. Os monistas afirmam que a mente e o corpo são a mesma coisa, sendo ambos simultaneamente materiais e imateriais. Deste modo, evitam o problema da mente e do corpo, mas a sua posição é desconcertante para um neurocientista. Contra os monistas, Descartes estabelece a indivisibilidade substancial da mente. Esta sua tese acarreta duas «consequências»: se a mente é indivisível, então as teorias que subdividem a função podem não ser correctas, e, se a mente existe separada do corpo, então as suas funções devem ser estudadas separadamente das funções corporais. Estas conclusões marcaram a história da filosofia e das neurociências: muitos neurocientistas estudam apenas a parte corporal da polaridade mente-corpo, ignorando ou recusando a mente que não pode ser estudada através de eléctrodos de registro ou estimuladores, enquanto outros ou identificam a mente com o cérebro e suas actividades, ou consideram que o problema não pode ser resolvido, mesmo que se conheça tudo acerca do sistema nervoso. Vimos que antes de Descartes se pensava que a mente estava localizada no líquido dos ventrículos, mais precisamente no liquor ventricular. <blockquote></blockquote>Descartes defende, na peugada de Andreas Vesalius, a localização dos processos mentais precisamente no tecido do cérebro. Com efeito, localiza a mente no corpo pineal. E apresenta dois argumentos fundamentais para apoiar a sua tese: primeiro, o corpo pineal é a única estrutura do sistema nervoso que não é formada por duas metades simétricas bilateralmente, e, segundo, está localizado próximo dos ventrículos. O segundo argumento é muito importante: Descartes acreditava que o fluxo de sangue enviado pelo coração para o cérebro leva à produção de «espíritos animais». Estes escoam-se pelos ventrículos e daí penetram nos nervos por orifícios, a fim de actuarem no corpo. Para Descartes, o corpo é uma máquina onde os espíritos animais actuam como «o ar nos tubos de um órgão». Pelo corpo, o homem é semelhante aos animais, uma vez que o seu corpo, tal como o dos animais, pode ser considerado «como sendo uma máquina de tal modo construída e constituída por ossos, nervos, músculos, veias, sangue e pele». Mas distingue-se dos animais por possuir uma alma que não pode ser confundida com os espíritos animais. Com efeito, a alma (ou mente) é única, imaterial e imortal. A glândula pineal ocupa um «lugar» ímpar e único no sistema nervoso: a sua «unidade tecidual» distingue-se das outras partes do nosso cérebro que «são duplas e nós só temos um pensamento de uma mesma coisa de cada vez». Quer dizer que a alma única só se pode localizar na glândula pineal, e é aí que ela se junta ao corpo e que, pela sua proximidade dos ventrículos por onde escoa o líquido ventricular, regula a circulação dos espíritos animais. Reciprocamente, estes actuam sobre ela «quando certas partes do corpo se movem ou são excitadas por objectos sensíveis». <blockquote></blockquote>Willis insere também a alma num ponto preciso do cérebro, mas, em vez de a situar no corpo pineal como Descartes, situa-a nos corpos estriados, nomeadamente os núcleos do tálamo e o corpo caloso que liga os dois hemisférios cerebrais. Desta forma, Descartes, bem como Willis, postulando que a mente estava unificada e localizada numa só estrutura nervosa, iniciou simultaneamente o debate acerca da localização da função cerebral e enunciou a posição negativa, ao mesmo tempo que esboçava, de forma radical e convincente, extremamente inteligente e elegante, uma neuro-filosofia que, pela complexidade do seu objecto, bem pode ser considerada como uma via privilegiada da unificação dos saberes e das ciências. Estas investigações neurobiológicas e neurofilosóficas, realizadas por Descartes, assim como as suas investigações embriológicas, têm sido negligenciadas mais pelos filósofos do que pelos cientistas. Mas nenhum deles compreendeu a novidade radical da filosofia cartesiana: filosofia e ciência não podem existir separadas uma da outra. Nem mesmo Edgar Morin soube «traduzir» a novidade neurológica cartesiana em termos antropológicos; aliás, o seu modelo antropológico nem sequer leva em conta a abertura operada pelas neurociências. <blockquote></blockquote>Embora localizacionista, Descartes conservava ainda um elemento mitológico, mais precisamente ideológico, no seu pensamento neurobiológico: a ideia de uma alma única, imaterial e imortal. As críticas severas e sagazes de Espinosa abrem algumas brechas no sistema cartesiano. Gassendi, Guillaume Lamy, Vaucanson, La Mettrie e Cabanis continuam o trabalho de demolição dos elementos ideológicos que persistem na teoria cartesiana do cérebro. Gassendi ensina, no Collége de France, que os animais devem igualmente possuir uma alma, uma vez que dão provas de possuir memória, raciocínio e outros caracteres psicológicos comuns ao homem. Os animais partilham com o homem uma alma, mas, ao contrário do que se possa pensar, esta partilha não humaniza certamente os animais, antes animaliza o Homem, o que não deixa de ser surpreendente se pensarmos que a biologia evolutiva, a etologia e a sociobiologia retomam precisamente, nos nossos dias, essa mesma ideia, é certo que em bases radicalmente novas. Desta forma, a ideia de uma «alma dos animais» constituía já uma desvalorização histórica da alma. Guillaume Lamy usa indiferentemente as palavras «alma» e «espíritos animais»; Vaucanson constrói um pato que batia as asas, comia sementes e digeria-as, chegando mesmo a imaginar um «homem artificial»; La Mettrie vai mais longe quando afirma que se pode retirar a alma do sistema cartesiano sem grande dano e que o próprio homem entra na categoria dos animais-máquinas; e, finalmente, Cabanis pensa que o «cérebro segrega o pensamento como o fígado segrega a bílis». Em suma, qualquer um destes autores procura banir a tese da imaterialidade da alma das obras filosóficas e científicas consagradas às ciências do cérebro. <blockquote></blockquote>Franz Josef Gall e Johan Casper Spurzheim retomam a teoria da localização da função e analisam as funções do cérebro, a partir da psicologia inglesa ou escocesa, procurando localizá-las sem o recurso à via introspectiva. Demarcando-se das teses propostas por Platão ou Galeno, do dualismo de Descartes e da tese sensualista de Locke e Condillac, Gall pensa que existe no homem um elevado número de «faculdades morais e intelectuais» congénitas, essenciais e irredutíveis. Elabora uma lista provisória com vinte e sete entradas, sete das quais são específicas do homem. A cada uma dessas entradas corresponde uma determinada faculdade. E a cada uma destas faculdades é atribuída uma determinada localização cerebral. Com efeito, Gall e Spurzheim pensavam que cada categoria de comportamento tem o seu «órgão» próprio que se situa num local preciso da parte do cérebro: o córtex cerebral. Para elaborar o mapa (ou carta) Gall, reconhecendo a dificuldade de acesso ao próprio cérebro, postula que o crânio reproduz fielmente a superfície do córtex. Spurzheim chamou<strong> frenologia</strong> ao estudo da relação entre as características da superfície do crânio e as faculdades do indivíduo. A <strong>cranioscopia</strong> consiste, portanto, em palpar o crânio para estabelecer uma correlação entre certas proeminências deste e faculdades particularmente desenvolvidas em certos indivíduos. Depois de ter reunido crânios de criminosos ou de doentes mentais e bustos de homens célebres, Gall observa-os cuidadosamente e, a partir desta observação, elabora um mapa das localizações ósseas correspondentes às tendências e faculdades particularmente exacerbadas neste ou naquele indivíduo. É certo que Gall, por acaso ou profunda intuição, consegue localizar a memória das palavras e o sentido da fala nas regiões frontais próximas da localização que hoje se lhes atribui, mas o restante da sua topografia é extremamente fantasista. Apontam-se geralmente quatro razões que explicam o fracasso da frenologia. <blockquote></blockquote>Em primeiro lugar, a psicologia das faculdades possuía uma relação muito pequena com o comportamento real. Algumas faculdades propostas por Gall, como por exemplo o instinto de propagação (ou sexual), amor da progénie (ou comportamento maternal), gosto por brigas e combates (ou agressividade), memória verbal, sentido das palavras, sentido dos lugares e das relações no espaço, são comportamentos reais cuja individualidade investigações recentes demonstraram claramente. Mas orgulho e gosto pela autoridade, amor da glória, espírito metafísico, talento poético, fé e devoção, auto-estima ou veneração, motivam perplexidade, uma vez que são «comportamentos» que não podem ser definidos e quantificados objectivamente. A localização exige, pelo contrário, a escolha de comportamentos objectivos, como a fala ou a agressividade, que possam ser relacionados com diversas áreas do cérebro. <blockquote></blockquote>Em segundo lugar, o postulado de que as características superficiais do crânio podiam ser utilizadas para «avaliar» o tamanho e a forma do cérebro desviou-a do estudo do tamanho das circunvoluções, apressadamente consideradas como rugas ao acaso e, por conseguinte, sem qualquer importância funcional. Deste modo, Gall e Spurzheim não se aperceberam que o crânio externo não reflecte o crânio interno ou as características da superfície do neocórtex, ficando impossibilitados de descobrir as assimetrias, como o plano temporal do córtex posterior esquerdo que reflecte a lateralização da linguagem no hemisfério esquerdo. <blockquote></blockquote>Em terceiro lugar, a frenologia convidava à especulação e, desta forma, indirectamente ao ridículo por associação. <blockquote></blockquote>Finalmente e em quarto lugar, Gall e Spurzheim, defendendo que o cérebro é o órgão da mente, que as características da personalidade são inatas e que o cérebro (ou mente) é formado por unidades que funcionam independentemente, iam contra a posição dominante representada por Descartes, segundo a qual a mente não é material e funciona como um todo. Basicamente, a frenologia retoma e desenvolve a via seguida por Nemésio e pelos Padres da Igreja, mas distingue-se do modelo ventricular por uma promoção do córtex em relação aos ventrículos. Deste modo, Gall e Spurzheim iniciam uma laicização do cérebro, já bastante avançada com La Mettrie e Cabanis. <blockquote></blockquote>A teoria localizacionista parece representar, na história das neurociências, a vitória do «materialismo» sobre a teoria da imaterialidade da alma. Isto não quer dizer que o «espiritualismo» e o idealismo não tenham contribuído para o desenvolvimento das neurociências; penso mesmo que estas duas tendências filosóficas, em especial o idealismo alemão e a fenomenologia, darão, num futuro mais ou menos próximo, um contributo decisivo para o desenvolvimento de um dos sectores mais precário das neurociências: a teoria neuronal da consciência e do conhecimento. <blockquote></blockquote>Pierre Flourens procurou, durante toda a sua vida, demolir a frenologia. Ele era um cartesiano estrito, inclusive até‚ ao ponto de dedicar o seu livro a Descartes. Aceitando o conceito de uma mente unificada, ele forja argumentos filosóficos contra Gall e Spurzheim com a experimentação. No seu trabalho experimental, Flourens efectua ablações de áreas ou de centros anatomicamente definidos, observando depois o comportamento do animal assim operado. Conclui que a ablação do cerebelo provoca uma deficiência na coordenação dos movimentos e que uma lesão da região da medula oblonga interfere na regulação de funções necessárias à vida, como é o caso da respiração. Estas observações demonstram efectivamente a tese localizacionista, mas Flourens, cartesiano como era, vai longe demais, e em sentido oposto ao localizacionismo, quando procura demonstrar que não existe uma localização da função no cérebro. Como todas as faculdades intelectuais residem no cérebro de uma forma coextensiva, a perda da função relaciona-se com a extensão da extirpação do tecido cortical: se todo o tecido for extraído, todas as funções intelectuais desaparecerão, mas, se permanecer intacto tecido suficiente, produzir-se-ia uma recuperação de toda a função. Quer dizer que com Flourens o córtex se torna o último refúgio da alma ou do espírito. Embora tenham sido persuasivas na sua época, a maior parte das conclusões de Flourens são hoje insustentáveis. As suas experiências foram realizadas com aves ou invertebrados inferiores, que, como se sabe, são animais praticamente sem neocórtex. O seu método de ablação é por vezes irreflectido, uma vez que, julgando retirar apenas o córtex, Flourens destrói simultaneamente estruturas subcorticais. E a sua análise do comportamento dos animais assim operados é demasiado rudimentar: valorizando actividades tais como comer e bater as asas, Flourens viu-se impossibilitado de apreciar verdadeiramente uma ou outra das faculdades dilucidadas por Gall e Spurzheim. Por estas razões, Gall e Spurzheim encontravam-se em boas condições para o criticar, salvaguardando o seu modelo localizacionista. <blockquote></blockquote>Contudo, o modelo de Gall permanece esquecido durante muito tempo. É certo que Leuret e Gratiolet realizam, entretanto, minuciosas descrições, quase fotográficas, das circunvoluções e cisuras do córtex cerebral, e estabelecem que os lobos frontal, temporal, parietal, occipital e insular são delimitados pelas cisuras de Sylvius e de Rolando, mas ainda assim continuou a dominar o conceito de Flourens da função holística. Só muito mais tarde é que Jean-Baptiste Bouillaud ir apoiar, a partir da experimentação animal, o modelo de Gall, em particular a sua ideia de que a função da linguagem se localiza no lóbulo frontal, dando assim início à anátomo-patologia da linguagem, que se ir converter na neuropsicologia. Apresenta, na Real Academia de Medicina de França, um estudo que, a partir de estudos clínicos, demonstra que a função da linguagem está localizada no neocórtex e que a fala está localizada nos lóbulos frontais tal como tinha sugerido Gall. E vai ainda mais longe: observando que os actos como escrever, desenhar, pintar e manejar a espada eram realizados com a mão direita, Bouillaud sugere que a parte do cérebro que os controla podia ser provavelmente o hemisfério esquerdo. Marc Dax observa que uma série de casos clínicos demonstram que os distúrbios da fala estavam associados constantemente com lesões no hemisfério esquerdo. Mas nem o trabalho de Bouillaud nem o de Dax tiveram impacto quando foram apresentados pela primeira vez. Esse impacto veio mais tarde quando Ernest Auburtin (genro de Bouillaud) apresenta em 1861, num congresso da Sociedade Antropológica de Paris, o caso de um paciente que cessou de falar quando se aplicou uma pressão nos seus lóbulos anteriores descobertos. Paul Broca, fundador da sociedade, que assistiu ao congresso, escutou-o atentamente. <blockquote></blockquote>Em 18 de Abril de 1861, Broca apresenta à Sociedade de Antropologia o caso de um paciente, Leborgne, a quem autopsiara na véspera. O doente tinha perdido a fala e só era capaz de dizer tan-tan (o que lhe valeu a alcunha) e de proferir uma blasfémia. Tinha uma paralisia do lado direito do seu corpo e exprimia-se por gestos, mas parecia conservar, noutros aspectos, integralmente a inteligência. Broca e Auburtin (que também examinou Tan a convite do primeiro) estavam de acordo de que Leborgne devia ter uma lesão frontal. Efectivamente o exame post mortem do seu cérebro revelou uma lesão cujo centro principal estava situado na parte média do lobo frontal do hemisfério esquerdo. Mais outros oito casos similares foram recolhidos por Broca e todos eles comprovam, sem contestação possível, que a lesão do lobo frontal esquerdo era a causa da perda do uso da palavra (afasia). Desta forma, Broca apresentava quatro contribuições fundamentais para o desenvolvimento das neurociências:</div><blockquote></blockquote><div align="justify">1) a descrição de um síndroma do comportamento que consiste numa incapacidade para falar, apesar da presença de mecanismos vocais intactos e de compreensão normal;</div><div align="justify">2) a «criação» da palavra afemia para descrever este síndroma;</div><div align="justify">3) a relação da afemia com um lugar anatómico conhecido agora como área de Broca; e</div><div align="justify">4) a elaboração do conceito de dominância cerebral da linguagem no hemisfério esquerdo.</div><blockquote></blockquote><div align="justify">É certo que, como já vimos, nenhuma destas contribuições é verdadeiramente original, mas coube a Broca sintetizar a teoria da localização da função, as descrições clínicas dos efeitos das lesões no cérebro e a neuroanatomia com tal clareza que, entusiasmando os neurocientistas, acabou por alterar a direcção que iria tomar a análise do neurocomportamento. Além disso, Broca recorda que os frenólogos, com a cranioscopia, tinham negligenciado demasiado o exame anatómico do doente. Muito mais importante que o exame dos acidentes do crânio ósseo externo que nada dizem da configuração interna do cérebro, é, como diz Broca, a indicação exacta do nome e da posição das circunvoluções afectadas por determinadas lesões. Ao estabelecer uma correlação rigorosa entre casos anatómicos e exemplos de comportamento, Broca demonstra pela primeira vez a localização cortical descontínua de uma faculdade bem definida e, simultaneamente, a existência de assimetria entre os dois hemisférios, que passara despercebida a Gall. Deste modo, o postulado fundamental da «organologia» de Gall era comprovado cientificamente. Mas persiste ainda um elemento ideológico, herdado de Descartes, no pensamento científico de Broca: a articulação da alma com o corpo num ponto único e ímpar do cérebro que respeite a integridade do «eu». </div><blockquote></blockquote><div align="justify">Tudo parecia indicar que Broca, a partir da afasia provocada por lesões frontais esquerdas, tinha estabelecido dois princípios fundamentais para a localização: 1) um comportamento é controlado por uma área específica do cérebro; e 2) destruindo-se essa área, destrói selectivamente o comportamento. Mas nem todos os autores foram localizacionistas estritos: Hughlings-Jackson, Bastian e Wernicke não estavam de acordo com estes princípios lógicos e clínicos.</div><blockquote></blockquote><div align="justify">Carl Wernicke realizou duas descobertas devastadoras para a localização estrita: primeira, existe mais de uma área da linguagem, o que sugere que os comportamentos tais como a linguagem estão programados sequencialmente, e, segunda, uma lesão que suprimisse uma área podia produzir deficiências indistinguíveis das que se seguem a uma lesão da área per se, donde resulta o conceito de desconexão. Theodore Meynert tinha já sugerido que o córtex por detrás da cisura central desempenhava uma função sensitiva, chegando mesmo a descobrir a projecção do nervo auditivo no córtex da cisura de Sylvius do córtex temporal. Além disso, suspeitando de uma relação entre a audição e a fala, descreveu dois casos de doentes afásicos com lesões nesta área de projecção auditiva. Mas foi Wernicke que descreveu posteriormente os detalhes desta afasia do lobo temporal, situando-a dentro de um quadro teórico. De modo distinto de Broca, ele estabelece quatro características principais da afasia:</div><blockquote></blockquote><div align="justify">1) havia uma lesão na primeira circunvolução temporal, na área agora conhecida como área de Wernicke;</div><div align="justify">2) não havia hemiplegia contralateral ou paralisia;</div><div align="justify">3) os doentes podiam falar fluidamente, mas o que diziam era confuso e carecia de sentido (parafasia); e</div><div align="justify">4) embora fossem capazes de ouvir, não podiam compreender ou repetir o que se lhes tinha dito. <blockquote></blockquote>Esta descrição de um novo tipo de afasia é acompanhada de um modelo para explicar como a linguagem está organizada no hemisfério esquerdo. Este modelo implica uma programação sequencial da actividade nas duas áreas da linguagem: as imagens de som de objectos são armazenadas na primeira circunvolução temporal e daí são enviadas através de uma via (o fascículo arqueado) para a área de Broca, donde se retiram as representações dos movimentos da fala. Vimos que uma lesão na área de Broca reproduzia a perda dos movimentos da fala sem perda das imagens do som. Quer dizer que a afasia não era acompanhada por uma perda de compreensão. Mas numa lesão do lobo temporal ocorre sempre perda da compreensão. Embora os movimentos da fala possam ter lugar, a fala não tem qualquer sentido, uma vez que o indivíduo não é capaz de controlar o que diz. Contudo, o modelo de Wernicke vai ainda mais longe: a lesão das fibras que conectam as duas áreas da linguagem acarreta uma deficiência da fala, denominada afasia de condução. Nesta afasia, os movimentos da fala e os sons, bem como a compreensão, podem ser conservados, mas, dado que o indivíduo é incapaz de julgar a incongruência do que disse, a fala continua a ser parafásica. </div><blockquote></blockquote><div align="justify">O conceito de desconexão foi retomado por Déjérine, que, em 1892, descobre um caso em que a dislexia (perda da capacidade de ler) era produzida quando se desconectava a área visual da área de Wernicke. Na mesma sequência, Liepmann demonstra que a apraxia (incapacidade de realizar movimentos como resposta a ordens) era devido a uma desconexão das áreas motoras a partir das áreas sensoriais. Deste modo, o conceito de desconexão de Wernicke proporcionou uma metodologia que unia anatomia e comportamento. Esta união permitia predizer novos síndromas cerebrais e as hipóteses assim formuladas podiam ser submetidas a prova. </div><blockquote></blockquote><div align="justify">A hipótese de que o comportamento estava localizado de algum modo no neocórtex, proposta por Broca, Wernicke e outros neurólogos clínicos, foi reforçada pelo desenvolvimento da técnica para estimular electricamente o cérebro. Antes da publicação do trabalho de Gustav Theodor Fritsch e de Eduard Hitzig (1870), intitulado «<em>Acerca da excitabilidade eléctrica do cérebro</em>», pensava-se que o neocórtex não era excitável mediante estimulação eléctrica. Contra esta opinião dominante, Fritsch e Hitzig não só demonstraram que o neocórtex é excitável, mas também que é excitável selectivamente. Com efeito, a aplicação directa da corrente galvânica às partes do neocórtex anterior produzia movimentos no lado oposto do corpo, enquanto a estimulação do neocórtex posterior não produzia nenhum movimento. Mais importante ainda que a descoberta da excitabilidade selectiva do cérebro foi a descoberta de que a estimulação de partes restritas do neocórtex anterior produzia o movimento de partes específicas do corpo. Esta última descoberta sugere que existem no neocórtex centros ou representações topográficas das distintas partes do sistema motor. Deste modo, Fritsch e Hitzig derrubaram os ditames defendidos por Flourens, demonstrando que o córtex é excitável e desempenha um papel na produção do movimento, e que a função está localizada. <blockquote></blockquote>David Ferrier, desenvolvendo a técnica da estimulação, confirma os resultados de Fritsch e Hitzig em diversos animais, enquanto R. Bartholow demonstra que a técnica da estimulação eléctrica podia ser utilizada em pessoas conscientes, que descrevessem as sensações subjectivas produzidas pela estimulação. Mais tarde o método da estimulação eléctrica foi utilizado noutras situações experimentais, convertendo-se numa parte normal de muitos dos procedimentos da cirurgia cerebral ou neurocirurgia. </div><blockquote></blockquote><div align="justify">J Francisco Saraiva de Sousa</span></div>J Francisco Saraiva de Sousahttp://www.blogger.com/profile/10426620453669993201noreply@blogger.com3